31.1.05

ALEXANDRE É GRANDE MESMO - Em 2004, duas grandes produções cinematográficas levaram às telas dois grandes temas da Antigüidade Clássica. Vimos Tróia ainda no ano passado: uma tentativa fracassada — apesar dos milhões de dólares de Brad Pitt no papel de Aquiles — de adaptar para o cinema a Ilíada, o mais antigo poema narrativo produzido pela cultura ocidental e até hoje um dos pilares dessa cultura, que ainda parece valer a pena tentar vender no cinema. A ficção convencional e caça-níqueis de Hollywood detonou a narrativa poética do mito grego da Guerra de Tróia deixada por Homero. A mais despreocupada infidelidade ao texto épico — no filme, Menelau, marido de Helena, morre na guerra em vez de levar a mulher para casa; Pátroclo, que era amante de Aquiles, vira "priminho" do Brad Pitt, que os produtores devem achar que não vende bem como gay, mesmo em se tratando de um "gay" arcaico.


Neste janeiro está sendo exibido no Brasil Alexandre, dirigido por Oliver Stone, que, ao contrário de Tróia, é um exemplo valioso de filme histórico. Fica patente que os roteiristas leram os biógrafos antigos de Alexandre, como seu companheiro Ptolomeu — o genial Anthony Hopkins, que abre o filme como o velho faraó ditando a vida de Alexandre a seus escribas —, Plutarco, Arriano, Quinto Rufo e outros, ou pelo menos obras eruditas sérias que se valem dessas fontes quase primárias. O roteiro ordena num todo coerente e perfeitamente compreensível uma narrativa sucinta da trajetória breve e brilhante do grande conquistador, traduzindo em seqüências cinematográficas bem amarradas, mas com fidelidade e imaginação, os episódios célebres da vida do grande herói antigo, muitos dos quais conhecemos desde nossa infância. Por exemplo, a surpresa com que todos viram Alexandre, ainda menino, domar o arisco Bucéfalo, o cavalo que o acompanhou até a Índia e que se ajoelhava para que ele o montasse. Até Bucéfalo se ajoelhando aparece no filme: é um luxo. Os cavalos de todos os cowboys de Hollywood, aqueles que vêm correndo quando o mocinho assovia, têm no valoroso Bucéfalo seu ancestral cultural.


Outro luxo são os versos dos poetas trágicos gregos enunciados pelos companheiros de Alexandre em momentos particularmente intensos da narrativa. Ao ser assassinado por Alexandre num acesso de ira e embriaguês, seu general Clito morre dizendo na tela um verso da tragédia Antígona, de Eurípedes, o que é relatado por Plutarco. Outro luxo ainda: Aristóteles — um lindo velho Christopher Plummer — dando aula ao ar livre para Alexandre e seus amigos Nearco, Ptolomeu, Cassandro, Hefáiston e outros, explicando-lhes que os bárbaros estão no Oriente e como o amor entre rapazes pode ser edificante ou lascívia degradante.


A fidelidade histórica, em Alexandre, não se perde nos limites do documental. Ao contrário, sustenta um olhar sobre o passado contaminado pelas questões e inquietações do presente, o que é a grande qualidade do filme. Das inúmeras possibilidades abertas pelos feitos surpreendentes de Alexandre, seus atos paradoxais, seus afetos familiares divididos entre Filipe, o pai autocrático, que admira e inveja o futuro que advinha para o filho, e Olímpia, a mãe meio bruxa — a perturbadora Angelina Jolie —, que produz uma perfeita "criança narcísica de mãe fálica", como diria a psicanálise, o filme destaca com sabedoria o traço da vida de Alexandre que pode dizer algo às platéias jovens do Ocidente, mergulhadas na mesmice da cultura contemporânea: a paixão irresistível pela diferença, o desejo incansável do Outro — de alteridade —, que leva Alexandre sempre mais adiante, que o faz amar a Ásia e descobrir que a "barbárie" não está no Oriente, como lhe disse Aristóteles na infância e como Bush repete hoje em dia ao mundo. Até o desejo pela mulher, Alexandre descobre na diferença oriental. É verdade que a mulher com quem se casa, Roxana, usa braceletes de serpentes como sua mãe, Olímpia, da qual é um "pálido reflexo", no dizer do nosso herói.


A cena de sexo selvagem da noite de núpcias mexe com a platéia, como também mexe com a platéia o amor grego entre rapazes que liga Alexandre a Hefáiston, seu dileto e heróico companheiro de juventude. E como é bonito o bofe! Fica todo mundo meio nervoso no cinema: a juventude dá gritinhos quando pressente o "caso gay" e senhores indignados retiram-se com as netinhas que levaram lá para conhecer o "grande vulto histórico". Mas a visão quase romântica que o filme passa do amor grego entre rapazes (o que é histórico) propõe, digamos assim, uma reflexão que pode ter um efeito produtivo sobre o universo gay em expansão atualmente no Ocidente, quando tantos estão saindo do armário.


Já os episódios que envolvem Alexandre e o dançarino eunuco Bagoas (que é personagem real, veja-se o romance histórico O menino persa, de Mary Renault), com o rápido nu de Colin Farrell, decerto seriam classificados pelo pedagogo Aristóteles de "degradante lascívia". Mas afinal ninguém é de ferro, nem o Grande Alexadre, depois de tantos heroísmos, tantos ferimentos por todo o corpo e tantas decepções com os amigos... Além disso, há as cenas das batalhas de Gaugamela e contra os elefantes do rei de Lahore, que são de tirar o fôlego. A velocidade das imagens e a penetração do som, no estilo do cinema pós-spielberguiano de seqüestro da alma, levam adultos razoavelmente equilibrados a taparem os olhos e os ouvidos. Parece que você está lá — perdido e desorientado no meio da confusão letal. E Colin Farrell, ótimo, supera nessas cenas a competente interpretação psicológico-naturalista do bom e velho cinema americano e ganha grandeza francamente teatral.


(Texto publicado no Caderno H do Jornal do Brasil)




O MENINO PERSA - Segundo estudiosos e historiadores, o grande amante de Alexandre, o grande foi o jovem indiano Bagoas. O romance entre eles foi narrado no livro O Menino Persa, da escritora lésbica Mary Renault. O livro é um cult. Foi publicado no Brasil, mas a edição está esgotada. O livro ainda pode ser encontrado em sebos. Em 22 de abril de 1993 Paulo Francis escreveu sobre O menino persa na sua insubstituível coluna no jornal O Globo. A seguir, leia o que Francis escreveu.




Eu li "O menino persa" de Mary Renault numa longa viagem de avião ao Japão (quem te conhece, não volta jamais...), porque não durmo em avião, e ainda sobrou tempo para ler um romance de P.D. James ou Ruth Rendell, não me lembro de qual. Mas "O menino persa" é uma reconstrução duca do mundo de Alexandre, o Grande, e de um suposto caso que tem com um menino eunuco. O menino, como as mulheres de "Porgy’n Bess", é "A sometime thing", para Alexandre, uma bimbada ocasional do general, mas a mão de Mary Renault não falha em delicadeza, discrição e precisão. A arte torna tudo palatável.


Agora, saiu uma biografia dela na Inglaterra, "Mary Renault", Chatto, 18 libras, 322 págs., de David Sweetman. Mary Challans se chamava, um bom nome, por que mudou? Classe média, mas escola pública (particular, de elite) e Oxford. Leu grego nas melhores traduções. Uma noite numa enfermaria, quando treinava para enfermeira, encontrou uma mulher chamada Mullard e foram felizes para sempre. O grego dela me pareceu, leigo, de primeira qualidade. Leio de helenistas profissionais que é.
Mary Renault se parece muito com Marguerite Yourcenar. Detesta mulher, apesar de seu destino sexual, o mesmo de Yourcenar. Adora homens, desde que não lhe ponham a mão (o "Édipo" é óbvio). É curioso. A uma amiga que lhe gaba o corpo de mulher, responde "Gostaria de concordar com você, mas não posso". Seus homens são tão idealizados como os aristocratas distantes e arrogantes de Yourcenar. Mary foi violentamente contra a chamada gay lib, que considerava uma forma absurda de separatismo.



O casal se mudou para Cape Town, a cidade mais agradável da África do Sul, até ela trocar as fichas. Ler Mary Renault em público é a mais completa bandeira que se pode dar ("dead giveaway"), li de um admirador. Bobagem. Li na "JAL" às escâncaras e nenhum dos nossos "pequenos irmãos amarelos" me lançou nem sequer um olhar de estranheza. A maioria do público é filho de Filista. Literatura é grego para essa gente.


Madonna vem aí...

 

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