OUTUBRO – Enquanto leio a Fenomenologia de Espírito, de Hegel, escuto sem parar o CD Yes, da dupla Pet Shop Boys. A música suave e vibrante das bibas inglesas ajuda a aliviar o sofrimento que a filosofia hegeliana me provoca. Estudar Hegel é mergulhar no sofrimento. Filosofar, para esse ícone do pensamento alemão, é sentir dor. É caminhar por uma estrada cheia de cacos de vidro, com um punhal enfiado nas costas. Por isso que eu adoro Platão, para quem filosofar é sentir prazer. Outro dia eu estava com um grupo de colegas no corredor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, quando o professor Rafael Haddock-Lobo nos chamou para entrar na sala de aula com a seguinte frase: “Vamos sofrer, moçada?”
O professor Rafael Haddock-Lobo é uma figura. Charmoso e elegante, é ele quem decifra para nós, alunos, o pensamento sombrio de Georg Friederich Hegel. Mas, ao contrário do seu filósofo-fetiche, o professor Rafael é alto astral e muito bem humorado. Ele sempre faz comentários irônicos sobre as idéias do pensador alemão e, muitas vezes consegue provocar gargalhadas em seus alunos.
Ler o texto de Hegel exige um esforço intelectual absurdo. A narrativa de suas idéias é feita de um modo excessivamente rebuscado, gótico, dark, sombrio. Quando o leitor consegue decifrar aquilo tudo, consegue perceber conceitos inteligentes de um pensador apurado. Ao mesmo, tudo é um grande exercício de vaidade intelectual. “Estão vendo como eu sou inteligente?”, parece perguntar Hegel, nas entrelinhas de seu tratado filosófico.
Uma coisa que eu percebi desde que decidi mergulhar nas águas profundas da filosofia é que a vaidade intelectual é uma aliada constante dos grandes pensadores e seus discípulos. Para quem, como eu, sempre circulou nos bastidores do mundo da moda ou no universo fútil da indústria de telenovelas, foi um choque perceber que, no que diz respeito à vaidade humana, esses ambientes são idênticos. Nesse aspecto não existe diferença nenhuma entre Georg Hegel e Lenny Niemeyer. Estudando a Fenomenologia do Espírito consigo perceber em Hegel o mesmo exibicionismo que existe, por exemplo, numa estrela vulgar como a Mulher Melancia. Ele tem idéias brilhantes, um pensamento sofisticado e conceitos com conteúdo. Mas, ao expor sua filosofia, sua vaidade intelectual se coloca mais importante que suas idéias.
ASSIM FALOU HEGEL - Segundo uma representação natural, a filosofia, antes de abordar a Coisa mesma – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade, necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento com que se domina o absoluto, ou um meio através do qual o absoluto é contemplado.
Parece correto esse cuidado, pois há, possivelmente, diversos tipos de conhecimento. Alguns poderiam ser mais idôneos que outros para a obtenção do fim último, e por isso seria possível uma falsa escolha entre eles. Há também outro motivo: sendo o conhecer uma faculdade de espécie e de âmbito determinados, sem uma determinação mais exata de sua natureza e de seus limites, há o risco de alcançar as nuvens do erro em lugar do céu da verdade.
Ora, esse cuidado chega até a transformar-se na convicção de que constitui um contra-senso, em seu conceito, todo empreendimento visando conquistar para a consciência o que é em si, mediante o conhecer; e que entre o conhecer e o absoluto passa uma nítida linha divisória. Pois, se o conhecer é o instrumento para apoderar-se da essência absoluta, logo se suspeita que a aplicação de um instrumento não deixe a Coisa tal como é para si, mas com ele traga conformação e alteração. Ou então o conhecimento não é instrumento de nossa atividade, mas de certa maneira um meio passivo através do qual a luz da verdade chega até nós; nesse caso também não recebemos a verdade como é em si, mas como é nesse meio e através dele. (Introdução da Fenomenologia do Espírito)
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