Clarice Lispector e as paixões da
filosofia
Por
que não podemos chamar Clarice Lispector de filósofa? Nos relatos biográficos a
ela dedicados Clarice é sempre chamada de escritora, romancista e jornalista,
atividades que ela realmente exerceu. Ela, realmente, sempre se colocou dentro
desse universo profissional, onde é chamada de escritora. Mas, quem lê seus
escritos, não pode deixar de reconhecer que ela foi, com muita verdade, uma
pensadora. Como escritora ela nunca se contentou em apenas contar uma história,
como faz a maioria dos romancistas. A reflexão, o pensamento, são partes integrantes
das tramas, das situações e do caráter dos personagens de suas obras. “Cada
coisa tem um instante em que ela é”, diz a misteriosa personagem do livro Água Viva. Essa reflexão sobre o tempo, o instante, o
passado, o futuro tem um consistente conteúdo filosófico. É uma divagação sobre
a existência, sobre a vida do homem no planeta. E esse tipo de divagação está
presente em toda a literatura de Clarice Lispector. Não seria ela uma autêntica
filósofa, que se desviou do seu verdadeiro caminho e acabou se tornando
romancista?
A
proposta de realizar um curso de Filosofia que tem como base um texto de
Clarice Lispector (em vez de um texto de Derrida, por exemplo) é algo que
quebra um paradigma e promove algo de revolucionário no ensino acadêmico. Por
que não estudar a filosofia contida na obra de Clarice? Aliás, isso poderia ser
o início de uma revolução cultural. O IFCS poderia propor cursos de filosofia
tendo como base textos de Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Machado de Assis,
ou mesmo de Gabriel Garcia Márquez. Por que não?
O
texto filosófico é considerado – pelo menos nos círculos acadêmicos – como
sendo superior, intelectualmente, ao texto puramente literário. O texto
filosófico tem mais status intelectual. O texto literário é considerado algo
menor, quando comparado a um texto filosófico. Mas, será justa essa
discriminação?
Podemos
tomar como exemplo o Gabriel Garcia Márquez, um escritor que merece ser
estudado num curso de Filosofia. Em seu último livro, “Memória de minhas putas
tristes”, ele conta a história de um homem velho que, sentindo a aproximação da
morte, resolve se presentear com uma noite de amor com uma jovem prostituta. O
ponto de partida literário do livro é esse. Mas, ao contar sua história, Garcia
Márquez, faz uma série de reflexões sobre
a velhice, sobre a existência, sobre o tempo e sua relação com o homem. Ao
leitor, impressiona não só o enredo do romance, mas, principalmente, as
reflexões contidas no texto. Não poderíamos considerar esse, um texto
filosófico? Em outro romance do autor, “O amor nos tempos do cólera”, a trama
do livro serve de base para uma série de reflexões sobre o amor, a paixão e a
existência humana. Não poderia esse livro ser adotado por um curso de Filosofia?
Jean
Paul Sartre foi bem sucedido nos dois universos. Conseguiu se destacar não só
com seus textos filosóficos, mas também com seus textos literários. Escreveu
romances (A idade da Razão), peças de teatro (Entre quatro paredes) e textos
filosóficos (Crítica da razão dialética).
Sartre foi essencialmente um filósofo e seus textos literários parecem
ter sido construídos com o objetivo de fazer reflexões sobre a existência, não
fosse ele um representante da corrente filosófica conhecida como existencialismo. Pois bem. O próprio filósofo, em entrevista
que faz parte do documentário “Sartre por ele mesmo”, distingue, de forma
discriminatória, o texto literário do texto filosófico. “A filosofia não pode ser exercida através da
literatura, já que o texto filosófico precisa de uma linguagem própria, precisa
usar termos técnicos para ser reconhecido como tal”, disse Sartre.
Será
que devemos concordar com Jean-Paul Sartre? Com seu raciocínio o companheiro de
Simone de Beauvoir busca ratificar a convenção intelectual de que a Filosofia é
coisa restrita a poucos, é algo para iniciados. Não é qualquer um que pode
filosofar. Não basta ser escritor para filosofar. Tem que ser filósofo. Talvez
não adiantasse argumentar para ele que o texto literário de Clarice Lispector é
absolutamente existencialista. Em Água Viva Clarice não busca contar uma
história, uma trama engendrada, um conflito amoroso, ou uma tragédia passional.
O livro fala apenas de alguém, um ser humano qualquer e suas reflexões acerca
de fatos da vida. O narrador se mostra ser alguém perplexo diante dos dilemas
da existência. E ficar perplexo diante de algo ou de um fato é um comportamento
típico de um filósofo. O que seria da filosofia se não fosse a perplexidade?
Pois ninguém estaria exagerando se dissesse que Água Viva é um texto sobre a
perplexidade. Mas o conservadorismo que cerca a Filosofia impediria um filósofo
acadêmico de reconhecer Água Viva como um texto filosófico. “Falta os
necessários termos técnicos”, diria o saudoso Sartre. E, de certa forma, usar
os “termos técnicos”, significa elitizar a Filosofia, fazer com que ela seja
algo para iniciados, seja algo relativo aos círculos acadêmicos. Uma vontade
clara de que a condição de filósofo seja restrita a poucos, ou apenas àqueles
que possuem uma formação acadêmica específica.
Ter a capacidade de usar os
“termos técnicos” significa possuir um status dentro da hierarquia filosófica. Quanto
maior a capacidade de usar os “termos técnicos”, maior o seu reconhecimento
como filósofo. É o saber sendo usado como balizador de status intelectual. É o
conhecimento sendo utilizado como um instrumento da vaidade. Muitos filósofos
sem profundidade gostam de exibir conhecimento como forma de definir um status
dentro de um grupo. Não é um comportamento muito diferente do de uma madame que
usa uma roupa de grife para definir seu status perante as amigas que freqüentam
o mesmo salão de cabeleireiro. Muitas vezes, na empolgação de exibir o status
intelectual de grande conhecedor dos “termos técnicos” do pensamento filosófico,
o pensador se esquece da máxima de Sócrates quando disse “só sei que nada sei”.
Será que a humildade intelectual de Sócrates encontra eco entre os filósofos do
nosso tempo?
É
injusto definir um texto puramente literário como sendo “inferior” intelectualmente
ao texto filosófico. É injusto que Clarice Lispector não tenha o tratamento de
filósofa, coisa que, sem sombra de dúvidas, ela sempre foi. Seu trabalho nos
mostra o retrato de uma pensadora perplexa diante da existência. Pode haver
texto mais existencialista do que “A paixão segundo G H”? A literatura de
Clarice se enquadra perfeitamente na premissa sartriana de que o ser humano
primeiro existe e só depois ele é.
Eleger
Clarice Lispector como tema de um curso de Filosofia quebrou um paradigma do
ranço intelectual que permeia o estudo acadêmico. A presença da literatura como
elemento de estímulo ao pensamento, à reflexão, é algo que só enriquece a
Filosofia.
O
ensaio “Paixões da literatura: ética e alteridade em Derrida”, da professora
Carla Rodrigues, nos mostra o quanto Derrida se valeu da literatura como
referencia para turbinar sua filosofia.
“Uma das paixões de Derrida pela
literatura foi a possibilidade de embaralhar as supostas distinções entre
ficção e não-ficção... Neste embaralhamento, a literatura ganhará ao mesmo
tempo uma função e um lugar. Embora não sejam termos intercambiáveis, função e
lugar vão aparecer como estratégia de questionamento da tradição
ético-política, sobretudo como consequência da discussão que Derrida estabelecerá
com Kant. A literatura será então o lugar privilegiado de “tudo dizer, tudo
aceitar, tudo receber, tudo sofrer e tudo simular”.
Impressionante
como o conteúdo do trecho acima nos remete a Clarice Lispector. De qualquer
modo, Derrida nos parece fazer, como argumenta o texto, um apaixonado relato sobre
o significado da literatura dentro de sua bagagem intelectual. Mas, de qualquer
modo, ele coloca a literatura como algo à parte no que diz respeito ao universo
filosófico. O texto literário é uma
coisa, já o texto filosófico é outra. Talvez seja o caso de unir esse dois
universos. Um texto literário pode sim, servir de pretexto para elucubrações
filosóficas. Afinal, não é raro o leitor encontrar reflexões contundentes em
peças literárias de Garcia Márquez, Clarice, Guimarães Rosa, Dostoievski,
Steinbeck, ou mesmo Nelson Rodrigues. Trazer a literatura para o universo acadêmico
pode injetar sangue novo ao estudo e a compreensão do que seja a Filosofia no
século 21.