Poesia é quando uma emoção encontra seu pensamento e o pensamento encontra
palavras.
MORA NA FILOSOFIA – Leio com
interesse o recém-publicado livro de Antonio Cicero “Poesia e Filosofia”. Com uma linguagem em que nunca abandona a
poesia, Cícero realiza uma “desconstrução” dos dogmas que buscam definir a
filosofia. E entenda-se por “desconstrução” o conceito elaborado pelo franco-argelino
Jacques Derrida: uma crítica de pressupostos dos conceitos filosóficos. Crítica que o
carioca Cícero estende aos conceitos poéticos. A “desconstrução”, segundo Derrida
(inspirado em Edmund
Husserl ) não significa destruição, mas sim decomposição,
desmontagem. Uma pesquisa de elementos que possam estar despercebidos num texto
filosófico ou num verso.
Leia a seguir um trecho de "Poesia e Filosofia", de Antonio Cícero.
A cabeça nas nuvens
Parece-me que, em geral, a questão
sobre as relações entre a poesia e a filosofia já pressupõe certo parentesco
entre os dois discursos. O que se quer saber é o grau desse parentesco. Creio
que uma das coisas que se observam em geral é, em primeiro lugar, que nem a
filosofia nem a poesia têm grande (se é que têm alguma) utilidade pública.
No que diz respeito à filosofia,
ninguém ignora que ela trata de assuntos extremamente genéricos e abstratos. Acaso
não são seus objetos, entre outros, o “ser enquanto ser” (ou o “ente enquanto
ente), a relação entre a matéria e a ideia, a natureza da verdade, etc?
Não é à toa que o filósofo, dedicando-se a semelhantes
questões, seja em geral considerado distraído ou avoado. Quando se diz
vulgarmente que “fulano é um filósofo” normalmente o que se quer dizer é que fulano vive com a cabeça nas nuvens. Conta-se
que, quando o primeiro filósofo, Tales, olhando para os astros, e sobre eles
especulando, caiu num poço, uma moça trácia caçoou do fato de que, pretendendo
conhecer os céus, ele ignorava o que se encontrava a seus pés. Um filósofo
moderno, Hegel, comentou que as pessoas que riem dos filósofos, por sua vez,
riem delas, que não podem cair no poço porque já se encontram no fundo dele
desde sempre...
A anedota sobre Tales corresponde
à ideia que até hoje o senso comum faz do filósofo. Registrando essa ideia, o
dicionário Houaiss da língua portuguesa, por exemplo, tem como um dos sentidos
da palavra “filósofo”: “que ou quem é desligado de preocupações materiais ou
indiferente às convenções sociais”; e tem, como outro: “que ou quem é estranho,
exótico”.
Pois bem, em relação a “poeta”, o
mesmo dicionário apresenta, como um dos seus significados, “aquele que tem
imaginação inspirada” e, também, “aquele que é dado a devaneios ou tem caráter
idealista”. Dado a devaneios? O poeta não é, então, pelo menos no imaginário
popular, menos distraído ou avoado, não tem menos a cabeça nas nuvens, que o
filósofo. E o povo não deixa de ter razão, nesse ponto. Que poderia, por
exemplo, estar mais longe do mundo utilitário do dia a dia do que, por exemplo,
o “Soneto do desmantelo azul”, de Carlos Pena Filho?
Então, pintei de azul os meus
sapatos
por não poder de azul pintar as
ruas,
depois, vesti meus gestos
insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul
ausente
E aprisionar no azul as coisas
gratas
Enfim, nós derramamos
simplesmente
Azul sobre os vestidos e
gravatas.
E afogados em nós, nem nos
lembramos
Que no excesso que havia em nosso
espaço
Pudesse haver de azul também
cansaço.
E perdidos de azul nos
contemplamos
E vimos que entre nós nascia um
Vertiginosamente azul. Azul