23.9.03



A PRESENÇA DE LUCINHA – Muita badalação em torno do filme que está sendo produzido sobre a vida de Cazuza, baseado no livro Cazuza – Todo o amor que houver nessa vida, escrito pela mãe do cantor, Lucinha Araújo. Mas, amigos do cantor, pessoas que conviveram com ele na intimidade acreditam que Cazuza detestaria a idéia de ter sua vida contada através do ponto de vista de sua mãe. Cazuza era um rebelde nato. Um outsider. Um maluco beleza. Durante toda a sua curta vida ele tentou se livrar dos tentáculos sufocantes de sua mãe mas nunca conseguiu. Nem mesmo depois de morto.


Lucinha sempre ocupou muito espaço na vida de Cazuza. Isso costuma acontecer nos casos de mães que têm filho único. Mas, no caso da Lucinha essa situação extrapolou porque ela sempre se realizou através do filho. Quando ele era vivo a mãe, além de super protege-lo, via no rapaz uma forma de se realizar através da vida dele. Dessa forma, a vida de Cazuza, para Lucinha, sempre foi uma idealização da vida dela. De tudo o que ela quis ter e ser.


Certa vez, na época em que fazíamos teatro, Cazuza chegou aborrecido ao ensaio. Desde então, a mãe dele já tinha se tornado um personagem folclórico para o grupo. Quando estava todo mundo reunido ele começou a chorar as mágoas. “Hoje a minha mãe passou de todas as medidas. Ela me infernizou o dia inteiro. Não me deixou em paz um minuto sequer. Eu percebi que ela sentia prazer em me encher o saco. Tenho que sair de casa. Eu não agüento mais”. Parece que eu o estou escutando, falando com sua voz de língua presa. “Eu adoro a minha mãe, mas hoje ela passou dos limites. Estou com tanta raiva dela, que só de vingança eu vou contar uma história para vocês”.


Ficou um clima de expectativa no ar. Então Cazuza olhou bem sério para a turma e nos fez uma revelação. “Minha mãe já foi costureira da Elis Regina. Ela detesta que as pessoas saibam disso. Então eu vou contar essa história para todo mundo, só para me vingar do que ela fez comigo”. Dito isso, ele caiu na risada. Depois continuou. “Eu tenho maior orgulho disso. De ser filho de uma mulher que já foi costureira da Elis Regina. Mas minha mãe não tem essa compreensão”. Naquela noite, depois do ensaio fomos ao Baixo Leblon encher a cara de chope. E eu me lembro do Cazuza, completamente bêbado falando para todo mundo na Pizzaria Guanabara. “Minha mãe já foi costureira da Elis Regina”.


Hoje, passados dez anos da morte do cantor, parece que Lucinha Araújo está mesmo decidida a não deixar o Cazuza em paz. Lucinha sempre quis ser uma estrela. Uma cantora famosa. Mas nunca conseguiu. Gravou vários discos, afinal ela era casada com o presidente da gravadora Som Livre. Nunca aconteceu nada com a sua carreira. O máximo que ela conseguiu como cantora foi ser costureira da Elis. Ela então se voltou para a carreira do filho. Já que ela não tinha podido ser uma estrela, o seu filho querido seria uma estrela muito maior que qualquer outra.


Cazuza foi criado com excesso de proteção e mimos. Tinha tudo o que queria. Os pais tinham ficado rico com a gravadora Som Livre e podiam fazer todas as vontades do seu filho único. Além disso, por ser filho de um homem muito importante do meio artístico, Cazuza vivia sendo adulado por todo mundo. Dos garçons do Baixo Leblon às maiores estrelas da música brasileira. Todos adulavam o Cazuza. E essa vida de mimos e adulações foi a razão da sua tragédia. Pois foi isso que fez com que ele não se cuidasse. Ele foi criado como alguém que estava acima de tudo e de todos. Alguém que podia fazer o que quisesse. Se ele brigava no bar e ia preso o pai pagava o prejuízo e contratava o melhor advogado para tira-lo da cadeia. Cazuza tinha a idéia de que os pais dele poderiam livra-lo de qualquer problema que tivesse. E a vida escolheu uma maneira muito dura e cruel de dizer-lhe que não era bem assim.


Cazuza tinha uma vida de riscos. Ele bebia feito um louco e depois saía dirigindo pelas ruas da cidade numa velocidade assustadora. É impressionante que nunca tenha sofrido um grave acidente. Além disso, havia as drogas. Todos nós nos drogávamos naquela época. Mais ele sempre ia mais fundo. Afinal, ele era o “exagerado”. Lembro que certa vez, depois de uma noitada no Café Lamas, ele foi me levar em casa. Ele correu tanto e atravessou tantos sinais fechados que eu fiquei em pânico. Quando ele me deixou em casa, jurei para mim mesmo que nunca mais entraria num carro dirigido pelo Cazuza.


Cazuza era muito apegado aos integrantes do seu grupo de teatro, o Corpo Cênico Nossa Senhora dos Navegantes. Na convivência diária era um sujeito doce, meigo, amoroso. Ele demonstrava uma felicidade muito grande de estar ali com a gente. Cantando, dançando, criando cenas, compondo. Apesar de nunca termos “acontecido” no teatro brasileiro, a formação daquele grupo de teatro foi uma coisa muito marcante na vida de todas aquelas pessoas. A gente sempre fala disso quando se encontra por aí. Nós aprendemos muito uns com os outros e com as cenas que criávamos. Foi um rito de passagem para a vida adulta. Só que foi um rito de passagem de alto nível. Pois algo muito especial aconteceu no encontro daquelas pessoas.


A forma como Lucinha administra a herança de Cazuza só evidencia a mãe espaçosa que ela sempre foi. No livro que escreveu, no filme que está produzindo, na Fundação que administra quem está presente nunca é o Cazuza mas sim o filho da Lucinha. Nada contra. Mas o Cazuza é muito mais do que isso. Era isso o que ele queria mostrar como artista. Que ele era muito mais do que o garoto rico mimado, filho de um dos homens mais poderosos da indústria de diversões. Ele queria mostrar que tinha vida própria. Que tinha idéias, talento e um jeito especial de olhar a vida.


Cazuza é muito mais do que, simplesmente, o filho da Lucinha, mas parece que a mãe dele não admite que ninguém na família seja mais estrela do que ela. Enquanto for viva, Lucinha sempre há de ser mais importante que o seu filho. Ela nunca irá permitir que as pessoas vejam o sujeito bacana e o artista instigante que Cazuza foi, sem que isso seja filtrado pelas lentes super protetoras do seu olhar de mãe. Isso me dá a triste sensação que o Cazuza acabou sendo vítima da sua própria família. Acredito que se não fosse sua educação de menino mimado certamente ele ainda estaria aqui, cantando para todos nós.

Madonna vem aí...

 

Postagens mais vistas