29.3.06

OS VERSOS DE UM POETA - A última vez que encontrei Eucanãa Ferraz foi no aniversário da Luciana de Moraes. Ele demonstrava estar feliz e buscava distribuir sua felicidade com todas as pessoas da festa. O poeta Eucanãa não admitia de ninguém nada menos do que a felicidade. Dançou o tempo inteiro ao som do samba cheio de gingado da cantora Martinália. No meio do salão sua figura de poeta era a perfeita tradução da delicadeza dos seus versos...




MORTE NO MAR
a T. S. Elliot

Lembro do rapaz que vi morrer na praia.
Os olhos abertos
- uma luz tão fria -
conchas espantadas que eram.
As mãos nada diziam de
anêmonas e navios.
Eu era um menino e
o azul verde da água.
Alto e belo, o afogado,
um capitão.




CONTO
para Eugénio de Andrade

Ainda não era menino
ou menina.
Tudo o que sabia
era o nome das cores.
Tudo o que sentia era
sede e fome.
Mas houve o verão em que
os barcos não regressaram. Foi quando,
apontando a linha do horizonte, a mãe
disse ao seu ouvido:
- és um homem.




DESEJO

Que venham as flores, o doce,
a blandícia e o azul
mais que azul
das calmarias.
Ainda assim, sonharemos
- secretos - com
beijar a boca das espadas.







LEMBRANÇAS DO ÚLTIMO VERÃO - Quando fui passar uma temporada na praia de Trindade conheci um cara, Abrahão, um rapaz judeu de 22 anos, que tinha vindo de Israel conhecer o Brasil. Era a primeira vez que ele viajava sozinho, sem a família. Tinha planos de ficar seis meses viajando. Queria primeiro conhecer o Brasil, começando pelo Rio, em seguida Bahia, Nordeste e Amazonas. Depois ia viajar pela América do Sul, começando pela Venezuela, até chegar a Argentina. É um ritual da educação judaica, quando o homem se torna maior de idade, faz uma longa viagem sem a família, para conhecer o mundo. É uma espécie de rito de passagem para a vida adulta.


Abrahão é muito simpático e logo ficamos amigos. Fazíamos longas caminhadas pelas trilhas que levavam as praias. Fumamos vários baseados admirando a paisagem magnífica da região. Nadamos na praia e conversávamos muito. Falávamos em inglês, mas ele me ensinou algumas palavras em hebraico. Abrahão me contou que morava em Jerusalem, bem perto do lugar onde Cristo nasceu. Disse que Jerusalem hoje é uma cidade bem moderna e agitada, e que lá ele tem muitos amigos.


Abrahão me disse para não acreditar no que os noticiários dos jornais e das TVs mostram sobre as desavenças entre os judeus e palestinos. Segundo ele existe muito sensacionalismo no noticiário. "A maioria dos judeus convivem pacificamente com os palestinos. Eu tenho vários amigos palestinos. Eles vão na minha casa. Eu vou na casa deles. Aquelas pessoas que vivem em guerra é apenas um grupo que vive apegado ao passado. São pessoas que vivem numa outra época. Como esses hippies que estão ali." De fato, Trindade é um povoado cheio de hippies que vivem de artesanato, como se estivessem nos anos 60.


Um dia Abrahão comentou que estava com saudades de seu cachorro, um pastor alemão. Eu perguntei como era o nome do cachorro e ele me respondeu: Edmundo. Fiquei surpreso. Por que Edmundo? Abrahão me explicou que era em homenagem ao nosso jogador de futebol. Ele mesmo. Edmundo, o animal. Foi assim que eu descobri que o jovem judeu sabia tudo sobre o futebol brasileiro. Conhecia o nome dos times, dos jogadores, dos campeonatos... Até já tinha visto a seleção brasileira jogando em Paris. Chiquérrimo.


Abrahão também falava muito de sua namorada. Ele me disse o nome dela em hebraico e explicou que aquele nome significava happiness em inglês. Eu expliquei que a tradução da palavra happiness para o portugues era felicidade. Desde então ele só se referia a namorada como Felicidade. Eu achava muito engraçado o jeito como pronunciava a palavra em portugues... Ele andava pela praia repetindo: felicidade, felicidade, felicidade...


A ligação de Abrahão com o Brasil não se fazia apenas através do futebol. Existia uma ligação também através da literatura. O jovem e belo judeu tinha lido todos os livros do Paulo Coelho. E falava da obra do Mago com intimidade e conhecimento de causa. Disse que os livros, na essência, contavam sempre a mesma história. Mas que era uma única história de grandeza espiritual.


Depois da temporada em Trindade voltamos a nos encontrar no Rio. Quando o moço chegou na cidade eu dei algumas dicas para ele, como por exemplo, ir à praia no posto nove. Ele adorou essa dica. Na sua temporada carioca foi todos os dias à praia no 9, onde logo se enturmou e fez amigos. Numa das vezes, quando cheguei na praia, ele estava num grupo, batendo papo, fumando um baseado. "Voce está parecendo um carioca", eu disse. Ele sorriu e disse que era assim que estava se sentindo.


Abrahão fez todos os programas clássicos do turista que vem ao Rio. Foi ao Pão de Açucar, mas preferiu o Cristo Redentor. Foi à Lapa, mas achou muito barra pesada. Disse que tinha muita gente e muita droga. Muito pó. Mas gostou do baile de Carnaval na Fundição Progresso, onde se divertiu e dançou muito. Detestou Copacabana, onde pivetes tentaram roubá-lo. "Copacabana não é legal", me disse. Adorou Ipanema, a Lagoa e o Jardim Botânico. Foi sozinho ao desfile das escolas de samba e se divertiu a valer com a música, as fantasias e as mulheres seminuas. Também curtiu de montão a Banda de Ipanema e achou os travestis muito divertidos. Tentou ir, com mais dois turistas, até a favela de Rio das Pedras, conhecer o famoso baile funk do lugar. Mas o taxi se perdeu na favela, não achou o baile e eles foram parados pela polícia. Os policias deram uma dura nos turistas, depois ameaçaram levá-los para a delegacia, alegando que eles estavam à procura de drogas. Caso eles não quisessem ser detidos teriam que pagar dez reais cada um.


Quando Abrahão me contou essa história dos policiais eu fiquei morrendo de vergonha. O Rio de Janeiro tem uma policia que se corrompe por dez reais! Puta que pariu! Essa cidade realmente está com sérios problemas. Outra coisa que me chocou foi a forma como ele se referiu a Copacabana, local onde pivetes tentaram assaltá-lo. Eu sei como ele estava se sentindo. Copacabana realmente se transformou numa cilada para turistas. Quem é da cidade e anda por ali percebe que as ruas do bairro estão cheia de gente que está ali para se dar bem com os gringos. Traficantes, assaltantes, pivetes, ambulantes, meretrizes, gigolôs... O bairro oferece um péssimo serviço de bares, restaurantes e suas ruas são verdadeiras armadilhas para os turistas. Um bairro de fama internacional! Que horror! Infelizmente o Rio é uma cidade que não tem prefeitura, nem governo.


Um dia antes de Abrahão viajar para a Bahia e o Nordeste, eu o convidei para almoçarmos no Via Farme, um lugar onde eu adoro comer massas. Lá Abrahão me contou que não é um judeu ortodoxo, que come carne de porco e que estava gostando muito de conhecer o Brasil. Eu dei telefones e endereços de amigos que poderia procurar nas suas andanças pelo País. Dei dicas de praias, cidades e locais que deveria conhecer. Recomendei que quando chegasse em Manaus procurasse o lutador Wallid Ismail, meu amigo, que é Palestino e ele adorou a idéia e me explicou o significado da palavra "Ismail". Grande figura o Abrahão.

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