27.3.07

VERDADE TROPICAL Guilherme Araújo gostava de divertir as pessoas. Por isso ele escolheu a profissão de empresário e produtor de shows, eventos e festas. Ele sentia prazer em divertir os outros. No seu livro “Verdade Tropical”, lançado em 1997, uma espécie de biografia de sua carreira artística, Caetano Veloso fala muito de Guilherme Araújo e sobre o trabalho dele nos bastidores da MPB. O livro é inteligente, bem escrito, fácil e gostoso de ler. A seguir, publico alguns trechos do livro, em homenagem ao Guilherme.


DIVINO MARAVILHOSO Guilherme Araújo que se apaixonara pela força expressiva de Bethânia desde a primeira noite no Teatro Opinião, quis passar da condição de mero produtor de espetáculos à de verdadeiro empresário, e viu no grupo de amigos de Bethânia um possível elenco de contratados à altura de suas pretensões. Guilherme era um personagem fascinante. Prognata, de braços finos e ombros estreitos, ele, que com sua feiúra combinada a um ar imodesto tinha tudo para ser repulsivo, terminava por cativar quem quer que transpusesse a barreira do primeiro impacto e realmente dele se aproximasse. Havia uma espécie de nobreza no seu jeito franco de emitir opiniões originais sobre o mundo dos espetáculos. Ele repetia sem cessar um elogio a Bethânia que era uma síntese do seu critério: “Internacional, meu querido. Ela é a mais internacional de todas as artistas brasileiras”. Para ele, nós, ou outros baianos, éramos a confirmação do que ele vira em Bethânia. Éramos “chiques” e “modernos” e poderíamos ser “internacionais”. Mas, embora ele tenha vindo a trabalhar de fato com todo o grupo – e tenha permanecido ao lado de Gil, Gal e meu por muitos anos depois que Bethânia se desligou dele -, sempre me pareceu evidente que nenhum de nós jamais chegou a impressioná-lo como Bethânia o fez.

Ele abriu um escritório em Copacabana para dali dirigir os trabalhos e começou a fazer planos para seus novos contratados. Convidou Dedé para ser sua secretária. Ela, que, depois de uns meses num banco e outros num jornal, estava precisando de emprego, aceitou. Guilherme estava seguro quanto à Bethânia e Gil, cujas vidas profissionais tinham deslanchado. Mas não via nenhuma possibilidade de eu subir num palco para cantar e viver disso. Eu respondia, com uma segurança que o fazia rir incrédulo, que eu tinha certeza de ter talento para palco ou o que fosse, mas o fato é que o que ele considerava a única saída possível para mim era o mesmo que eu me imaginava fazendo: orientar os colegas, escrever canções e roteiros para seus shows, escrever releases para seus discos.

Quanto a Gal, esta sim devia viver de cantar e ele via mesmo um futuro radioso para ela na profissão, bastava que nós todos víssemos que, com sua voz lindíssima e sua figura doce, ela poderia tornar-se uma espécie de nova rainha do iê-iê-iê. Não uma cantora comercial qualquer, mas uma nova forma de cantora comercial, uma super-Wanderléa com um repertório inteligente. Isso ele dizia, e sorria de nossa reação temerosa e desconfiada. Sobretudo Dedé, para quem Gal era quase-irmã, temia que Guilherme viesse a atirá-la na mais degradante vulgaridade. O curioso é que os planos de Guilherme para Gal eram, afinal de contas, muito semelhantes aos que Rogério Duprat e eu estávamos a ponto de lhe propor. Eu nada dizia a Guilherme sobre isso, pois tinha medo de enfraquecer minha resistência a suas idéias mais frívolas, ou de contaminar a nobreza de propósitos do projeto rogeriano com o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial.




Uma discussão paradigmática desses conflitos sutis foi a que envolveu o nome artístico de Gal. Seu nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos. Desde Salvador, escrevíamos Maria da Graça nos cartazes e nos programas dos shows do Vila Velha, e a chamávamos de Gracinha no dia-a-dia e, carinhosamente, de Gau. Havia e há milhares de Gaus na Bahia: é o apelido carinhoso de todas as Marias das Graças ou da Graça de lá. Na verdade, no caso da nossa Gal, Maria da Graça era apenas o nome que constava na carteira de identidade e era usado como nome artístico; para todos os efeitos, seu nome era Gracinha: assim é que nos referíamos a ela em presença de estranhos, assim é que a apresentávamos a novos amigos. Na intimidade, no entanto, nós a chamávamos de Gau.

Guilherme achava Maria da Graça inviável como nome de cantora. Ele considerava que era belo e nobre, mas sugeria uma antiga interprete de fados portugueses, não poderia servir para uma cantora moderna, muito menos – e aqui ele voltava a sorrir diabolicamente – para uma nova rainha do iê-iê-iê. Ele gostava de Gau. Nós também. Em primeiro lugar porque era seu nome real (isso era fundamental para nós), e depois porque era bonito e fácil de aprender, além de ser marcante, uma vez que no Rio (e em São Paulo, pelo menos) esse não era um apelido comum como na Bahia. Mas havia dois problemas: Guilherme achava vulgar e “pobre” artista de nome único. Para ele era indispensável um sobrenome se o nome não fosse composto, e mesmo os nomes compostos raramente eram aceitáveis: Maria Bethânia era, é claro, uma exceção genial. E Gau, escrito assim, com u, parecia-lhe pesado e pouco feminino. Como em quase todo o Brasil Gal e Gau têm pronúncia idêntica, achamos praticamente indiferente que a grafia fosse a escolhida por ele (que se referia a uma cantora francesa chamada Francis Gal como exemplo).

Restava a questão do sobrenome. Gal Penna? Gal Burgos? Guilherme, não sem razão, preferiu Gal Costa. Este era mais eufônico do que os outros dois. Ele não ousava sair dos nomes verdadeiros por saber de nossa intransigência quanto a isso. Mas eu não gostei. Eu achava que já tinha concedido o bastante em aceitar o l, que ele aceitasse o nome único: Gal, simplesmente era a melhor solução. Mas ele insistiu no sobrenome e eu disse que Gal Costa parecia um nome inventado, parecia nome de produto, parecia nome de pasta de dentes e, finalmente, se Gau não era suficientemente feminino, Gal era a abreviatura de general. Com a subida do general Costa e Silva ao poder, em substituição ao marechal Castelo Branco, Gal Costa passava a ser homônima do segundo presidente do período militar. Mas a própria Gal, de quem afinal devia ser a última palavra, aceitou o nome e ele funcionou muito bem com a imagem pop que se criou para ela.

O mais bonito de tudo foi que Roberto Carlos e Erasmo Carlos, atendendo a um pedido de fazer uma canção para o primeiro disco tropicalista que ela gravou, apresentaram Meu nome é Gal, em que, sem nada saberem das exigências de Guilherme, insistem no apelido monossilábico e, num texto escrito para ser declamado por ela, frisam que “não precisa sobrenome, pois é o amor quem faz o homem”.

Guilherme tinha como fórmula máxima de elogio a expressão “divino, maravilhoso!”, não raro complementada com um “internacional!” se o entusiasmo o exigisse. Essa marca de frivolidade era tomada meramente como tal por todos no nosso meio. Resolvi usá-la – também a título de homenagem aos aspectos grandiosos da personalidade de Guilherme – como mote para a canção que Gil e eu estávamos preparando para Gal cantar no próximo festival da Record (os participantes do festival não precisavam ser contratados da emissora: Gal cantaria nossa composição e, mesmo que fizesse sucesso, não assinaria com a Record e viria conosco para um programa que iríamos fazer na TV Tupi).

A canção trazia sugestões de clima de rebeldia estudantil contra a ditadura e quase prefigurava, em suas imagens violentas, a luta armada. A melodia era, deliberadamente, o pop mais doce e pegadiço. Mas as palavras chamavam uma “menina” (“quantos anos você tem?”) para participar de algo não dito, mas que se requeria a “atenção para as janelas no alto/ atenção, ao pisar o asfalto, o mangue/ atenção para o sangue sobre o chão”, tudo convergido para o refrão que se anunciava explicitamente: “atenção, tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso/ atenção para o refrão/ é preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte”. Gal deu-lhe uma interpretação vibrante que marcou a virada de seu estilo, incluindo um repertório de sons vocais inédito entre nós, do qual não estavam ausentes nem os grunhidos de Janis Joplin nem os guinchos de James Brown. Divino, maravilhoso também foi o nome que escolhemos para o programa que estrearíamos na TV Tupi. (Caetano Veloso)





Guilherme Araújo diante do Papa João Paulo II, durante visita ao Vaticano. Guilherme está entre Gal e Dorival Caymmi. Ao lado de Gal, sua então namorada, Lúcia Veríssimo.





É PROIBIDO PROIBIR - Acho que foi ainda em maio de 68 que Guilherme me mostrou a reportagem da revista Manchete sobre os estudantes em Paris, na qual ele tinha encontrado a fotografia em que se lia, pichada numa parede, a frase “É proibido proibir” (que Buñuel em suas memórias diz ter sido tomada pelos estudantes aos surrealistas), a seu ver excelente para ser transformada em música. Diante da minha reação fria à sugestão, ele sorriu com o ar teimoso de quem sabia que ia terminar me convencendo. Eu achava o paradoxo engraçado, ms não tinha intenção de retomá-lo. Primeiro porque reconheci ali a natureza de choque efêmero desses ditos: se repisados, eles revelam uma ingenuidade que trabalha contra os próprios impulsos que os inspiraram. Depois porque eu não queria que se confundisse o nosso movimento com o movimento dos parisienses, nem no Brasil nem no exterior – se fosse o caso de algum dia o que fazíamos vir a ser conhecido fora (o que eu já esperava - e mesmo desejava – menos do que antes de ter meu primeiro disco pronto). Mas Guilherme não desistiu. Ele me pedia todos os dias que fizesse uma canção usando a frase. Finalmente me convenceu a fazê-la “só para ele”. (Caetano Veloso)






A VERDADEIRA BAIANA - Em 1997, quando completou 60 anos, Guilherme Araújo foi entrevistado pelo jornal O Estado de São Paulo e soltou o verbo. Nessa época ele ainda brigava na justiça com Gilberto Gil e estava afastado de Gal e Bethânia. Caetano sempre se manteve unido a ele. A entrevista não reflete exatamente o que era Guilherme, mas tem observações curiosas e, porque não dizer, venenosas, que ele faz sobre o Brasil e os artistas brasileiros, inclusive seus afilhados, a quem ele não poupa alfinetadas. Logo depois dessa entrevista ele entrou em acordo com Gil sobre a pendência na justiça relativa a direitos autorais de antigas músicas do cantor. Para provar que não guardava nenhuma mágoa do empresário Gil entrou com um pedido na Assembléia Legislativa da Bahia pedindo que fosse concedido a Guilherme o título de cidadão baiano. E ele ficou muito feliz com isso. "Agora eu sou a verdadeira baiana", disse ele a Gal Costa, quando a cantora ligou para lhe dar parabens pelo título.. Em seguida, quando doou à prefeitura do Rio sua casa em Ipanema, Guilherme chamou Bethânia para ser testumunha da doação. A partir daí os dois voltaram a ficar próximos.

Na entrevista ao Estadão Guilherme fala da morte: "Quero ser cremado. Vi a Carmem Miranda morta, tailleur vermelho, toda maquiada, e o Tom Jobim, também maquiado. Mas no Brasil, enterro é sempre uma coisa penosa. Vou deixar dinheiro para uma festa e quero minhas cinzas atiradas do Pão de Açúcar, onde organizei grandes carnavais". clique AQUI e leia a íntegra da entrevista.


DIVINO, MARAVILHOSO (Caetano e Gil)

Atenção
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção, menina
Você vem?
Quantos anos você tem?

Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol
Para esta escuridão

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte

Atenção
Para a estrofe, pro refrão
Pro palavrão
Para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba-exaltação

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte

Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão

É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte


Baseado meu amor...

  O STF discute a descriminalização da maconha. Num momento em que as grandes cidades brasileiras vivem num clima de guerra civil por conta ...

Postagens mais vistas