20.8.07

MOVIMENTO DOS BARCOS - Renata Sorrah sabe tudo de teatro. A minha admiração pelo seu trabalho começa pelas peças que ela escolhe para encenar. Nessa escolha já é possível perceber a sua visão particular do teatro e da arte de representar. E a palavra "inteligente" sempre me ocorre duas horas depois de eu ter assistido uma peça com a atriz. Duas horas é o tempo que preciso para me recuperar da emoção de ter visto um belo espetáculo. E foi assim depois que assisti a encenação de Um dia, no verão, do noruegues Jon Fosse. Eu sai do teatro chapado. Com a certeza que os deuses do teatro tinham abençoado aquela peça que eu tinha acabado de assistir.


Ingmar Bergman não morreu, a peça parecia dizer nas entrelinhas. Na encenação em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues existe algo de Interiores, o magnifico filme em que Woody Allen homenageia o cineasta sueco. E uma pitada de A mulher do tenente francês. Ao mesmo tempo o texto é absolutamente original. É um comovente ensaio sobre a solidão. Ou um discurso sobre o fim das coisas.


Num lindo dia de verão, em sua casa de frente para o mar, a mulher sem nome, personagem da Renata, recebe a visita de uma amiga que ela não vê faz anos. Enquanto a amiga sai para dar uma volta na praia, a mulher sem nome relembra o dia em que seu marido saiu para dar um passeio de barco e nunca mais retornou. Faz tanto tempo que ele se foi, mas ela ainda tem alguma esperança que o sujeito surja no horizonte e volte para casa. Enquanto ela fica parada olhando o mar pela janela, de costas para a platéia, com o rosto refletido no vidro, Silvia Buarque e Gabriel Braga Nunes encenam o último momento que o casal viveu junto. O último beijo, o último toque, a última briga. Tudo o que forma um casamento é vivido nesse dia em que ele foi pasear de barco e jamais voltou.


O cenário de Hélio Eichbauer merece ser descrito. É uma casa de praia. Poucos móveis. Alguns livros e um abajour. No lado direiro uma janela envidraçada onde a mulher sem nome fica olhando o mar. Do lado esquerdo quatro persianas grandes, que vão do teto ao chão, e que nem sempre estão abertas. Atrás das persianas o cenário sugere que existe uma varanda. Ao fundo uma projeção do oceano. Sendo asim, durante toda a peça, o público vê o mar ali atrás. Às vezes calmo e sereno. Às vezes revolto e ameaçador. O certo é que o mar ao fundo, de uma forma bem sutil, sublinha os climas da peça.


A direção de Monique Gardenberg optou pela suavidade, pela delicadeza. O texto pode ser encenado como uma história de suspense, mas a diretora ignorou esse aspecto da dramatrurgia. Eu não quero Hitchcock, eu quero Bergman, parecia ter dito Monique aos atores durante os ensaios. E ela conseguiu. Um dia, no verão é um Bergman com toques modernos. Vale registrar o bom gosto da trilha sonora escolhida pela diretora. As músicas funcionam à perfeição as intenções da peça. Só para se ter uma idéia, após o monólogo final da mulher sem nome, surge a voz de Toni Platão cantando Movimento dos barcos.

Bravo! Bravo! Bravo!

Renata Sorrah está perfeita como a mulher sem nome. Como já disse, ela sabe tudo de teatro. E, vamos combinar, ela sempre foi bergmaniana. Renata ama aquilo que faz. Quando está representando fica claro para a platéia que o palco é a sua vida. Em alguns momentos de Um dia, no verão, ela atua de costas para o público, que vê seu rosto apenas no reflexo da vidraça. Ela também anda pela palco, vagando, e o seu caminhar traduz a angústia e a solidão da personagem. Num dado momento, no centro do palco, ela recita um monólogo comovente, quando conta da agonia que viveu durante as buscas pelo marido, quando os bombeiros encontraram o barco à deriva. Enquanto narra os fatos o mar ao fundo fica extremamente revolto e cai uma tempestade. O efeito da chuva caindo é muito bem feito. Dá ao público a impressão que está caindo um dilúvio sobre a cidade. E Renata ali, no meio daquele turbilhão, narrando o drama da mulher sem nome. Uma atriz poderosa demonstrando controle absoluto sobre os eventos que fazem do teatro uma nobre arte.

Aplausos. Aplausos. Aplausos.

Silvia Buarque também impressiona como a mulher sem nome no dia em que o marido sumiu. Ela defende muito bem o papel da jovem esposa insegura na relação com o homem que ama, o belo e sexy cabeludo Gabriel Braga Nunes. Quando ele surge em cena de pés descalços e cabelos longos a platéia entende porque sua mulher fica mais de duas décadas esperando que ele volte do mar. A dupla Silvia e Gabriel se entende muito bem ao representar os altos e abixos do casal protagonista.


Certa vez, na praia de Ipanema, eu presenciei a Silvia Buarque contando para sua prima Bebel, que estava morando no exterior, como era a atuação da Renata Sorrah na novela Senhora do Destino. Ela falava com entusiasmo, imitava os trejeitos da vilã Nazaré e repetia várias vezes o quanto admirava a Renata como atriz. Ao assistir Um dia, no verão eu lembrei muito desse dia num verão e pude imaginar o quanto Silvia estava gostando de estar no mesmo palco que sua atriz favorita.


Malu Mader, que estava na platéia no último sábado, foi uma das pessoas mais entusiasmadas. Depois do espetáculo, diante do elenco, parecendo ainda sob o efeito embriagador da peça ela afirmou: Eu adorei tudo. O texto, a direção, a atuação dos atores e, principalmente, aquele mar enorme.


Aplausos. Aplausos. Aplausos.






MOVIMENTO DOS BARCOS

Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que eu não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo

Não quero ficar dando adeus
As coisas passando, eu quero
É passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais
Do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo

Não, não sou eu quem vai ficar no porto
Chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos, movimento


Madonna vem aí...

 

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