9.6.08

CINEMATECA – O poeta Eucanãa Ferraz está com livro novo na praça: Cinemateca. Eucanãa divide com Antônio Cícero o posto de “Novo Drummond” da poesia brasileira. Cinemateca reúne uma penca de poesias belíssimas. Como o título sugere, os poemas são como filmes, onde o leitor saboreia a direção, o enredo e a fotografia. Cinemateca é composto de três partes, nas quais os poemas-filmes são agrupados a partir da intensidade da luz: o livro se abre com os textos mais iluminados, solares, felizes; em seguida, a luz parece a do entardecer, e os poemas são invadidos pela melancolia; por fim, a luminosidade praticamente desaparece sob o peso da sombra, da escuridão, do desamor e da morte. Com delicadeza e precisão, intensidade e violência, cruzam-se nomes, cenários, histórias, mas, sobretudo, somos nós próprios – leitores – que estamos em cena, à qual somos transportados pelas lentes da poesia.









O MÁGICO

De mim o que trará em sua capa
enigmática o mágico? De mim
o que haverá em sua urna aguda
e bem guardada? O que se mudará

de mim para o mundo falso e fundo
de seus olhos sem que eu perceba
nem queira dar por isso? Depois
do espanto, depois do óbvio

sob o fingimento das mangas
e de quantas ciências ocultas
em suas mãos abertas (hora
de ir embora) o que seremos?

O que serei de mim quando sair de cena
o mágico? Que restará do encanto?
Há de ficar a música de quando?
Algum espinho? Um ás? O espanto?








CALENDÁRIO

Maio, de hábito, demora-se à porta,
como o vizinho, o carteiro, o cachorro.
Das três imagens, porém, nenhuma diz

do que houve, para meu susto, àquele ano.
O quinto mês pulou o muro alto do dia
como só fazem os rapazes, mas logo

pelos quartos e sala convertia o ar em águas
definitivamente femininas. Eu
tentava decifrar. Mas

deitou-se comigo e, então, já não era isso
nem seu avesso: a camisa azul despia
azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

de si mesmas, eu diria, e não sei ter
em conta senão que eram o que eram. Partiu
do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

Maio, maravilha sem entendimento,
demora-se à porta, como o vizinho,
o carteiro, o cachorro. Porém,

nenhuma das três imagens, tampouco
este poema, diz do que houve, para meu susto,
àquele ano.








O DOIDO

Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra

acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça

reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua

em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.

Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação

de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos

encardidos a água das praias,
como se província sua,

como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,

até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.

Madonna vem aí...

 

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